Das regulações insustentáveis às visões distorcidas em jornalismo nas redes sociais

Quando vejo discussões sobre a regulação das radiodifusão brasileira como uma das prioridades do novo mandato presidencial, é inevitável comparar com a Lei de Meios e a situação limite a que chegou a mídia argentina. Mas para além de discussões ideologizadas, tem um ponto de carência nesse debate que afronta a pesquisa mais recente em comunicação. E o meu caro orientador – ou diretor de tese, como dizem aqui -, Damián Fernández Pedemonte, aborda de maneira mais lúcida impossível:

Ainda que tanto no discurso de Cristina Kirchner como nos subtextos dos intelectuais se faz referência continuamente aos atores sociais, principalmente marginalizados, como atores do processo de comunicação pública, sobretudo para pregar a necessidade de ampliar o acesso à propriedade de licenças e ao poder de enunciação destes setores; não se considera (a esse público) nunca como audiências ativas, críticas, independentes. Se fala em seu nome, mas sem ouvir empiricamente a relação cotidiana que esses grupos e a sociedade em seu conjunto estabelecem com os meios de comunicação e com os novos meios do entorno digital. (…) Aqueles que controlam os meios (são tidos como quem) podem mudar a ideologia das pessoas e, ainda, ganhar eleições.” (p. 140-141, grifo meu)

A leitura do Prof. Damián é sobre a realidade argentina, mas pode ser aplicada sem prejuízo ao contexto brasileiro. Enquanto a população faz as redes sociais fervilharem em subjetividades, o poder público se agarra aos fracassados argumentos de teorias de efeito e frankfurtianas para pôr em caixinhas o que flutua, jorra, incontrolável, pelo poder de fala fluido nas redes.

Mas não é somente a ineficácia de uma discussão assim o que me preocupa, e sim a negligência desse debate em relação à capacidade de raciocínio – e de expressão – do público.

Extensa sem ser massiva, a audiência se fragmenta e toma consciência da autonomia individual no processo de escolhas políticas. (Ou se a mídia é tão golpista quanto se diz e altera resultados das urnas, faz 4 eleições presidenciais que o Brasil vive em profunda contradição! Mas a contradição não para por aí…)

“(Há uma contradição entre) a contínua fragmentação das audiências dos meios e o surgimento de grupos informativos concentrados que dão viés à informação. Na realidade, ambas tendências conduzem ao declínio dos processo de identificação conformista por parte das audiências. Os meios poderão pertencer a monopólios, mas as pessoas não creem mais neles.
Isso faz com que as audiências busquem outras mediações, além dos meios, para montar suas posições políticas. As audiências fragmentadas não são massas informes (ouié! faz 11 anos que eu digo que comunicação de massa não existe!) que recebem mensagens midiáticas num vazio social. (…) A pesquisa recente em comunicação sobre a sociedade civil e a participação política descobriu que os efeitos dos meios, especialmente durante as campanhas eleitorais, são mediados fundamentalmente pelas discussões interpessoais sobre política.” (p. 142-143, grifo e pitaco entre parênteses meu)

E ele encerra, com a cereja do bolo:

O grande ausente destes argumentos (que buscam instituir regulações de meios) é o público, a audiência crítica e ativa que constitui o ator político com iniciativa própria, autoconvocada e organizada.

Na mesma tarde, o brilhante Cido Coelho compartilha comigo a matéria de capa deste domingo, da Folha de São Paulo:

Folha-de-S

Pode baixar os pdfs aqui e aqui, mas em síntese a matéria traz uma pesquisa realizada pelo próprio jornal, mostrando que a hiperatividade registrada no Twitter e no Facebook em período pré-eleitoral no Brasil foi impulsionada pelo compartilhamento de links… de sites jornalísticos. Como “chancelador” de um argumento, o relato jornalístico seria uma espécie de âncora ao usuário padrão, que busca nos veículos a sustentação e a objetividade incapaz de encontrar nos relatos soltos, produzidos por sites não-noticiosos e usuários leigos (não-jornalistas).

Inevitável levar em consideração que se trata de uma pesquisa conduzida e veiculada por um dos jornais mais tradicionais do país – aquele que anunciou a demissão de 10 jornalistas, incluindo figurões como Eliane Cantanhêde na última semana, alegando motivações econômicas. Noutras palavras: o desespero tá batendo no queixo de náufragos que preferem morrer agarrados ao casco furado do que arriscar-se ao mar para salvar a própria vida.

(“Redes sociais, suas malditas! Pensam que vão roubar minha audiência? Pois vou *provar* que vocês não existem sem mim!” – bem que dá pra imaginar uma cena assim 😀 hehehe)

Acabo de ver que o Prof. Walter Lima publicou um post no Facebook fazendo uma análise excelente sobre essa pesquisa. Entre os vários pontos de fragilidade que ele apontou no estudo (da falta de transparência às dificuldades obviamente encontradas e não relatadas na coleta de dados no Facebook), coincidimos especialmente quanto a isso:

“3) A amostra foi retirada num tema e momento específicos evolvendo a eleição presidencial, que foi polarizada (FLA x FLU), quando um dos lados acusava (e ainda acusa) a grande imprensa tradicional brasileira de ser o Partido da Mídia Golpista (PIG) e os veículos internacionais (como The Economist) sendo “imperialistas”. Portanto, utilizar links provenientes em “jornais, portais, TVs, rádios, sites de notícias locais ou imprensa internacional” não era devido à credibilidade, mas sim fonte para acusação. Assim, faltou dizer quanto dos 61% dos compartilhamentos eram “positivos” ou “negativos”, para ficarmos somente na rasa avaliação de “sentimento”.”  (grifo meu)

Mas ok, vou tentar ver a pesquisa como não tão absurda e, numa percepção como usuária, é fato que o público compartilha, sim, muito conteúdo da grande mídia. Desconheço pesquisa, porém, que mostre o quanto desses compartilhamentos tem caráter de chancela, quanto é acompanhado por crítica e refutação. Só isso já questionaria a interpretação dos dados que a Folha traz nessa matéria.

Digamos que a maior parte dos links de notícia compartilhados pelas redes sociais seja para fortalecer o argumento do usuário, que ele concorde com o relato jornalístico, que use como sustentação ao seu olhar sobre a realidade. Eis um comportamento que sempre existiu, mas que toma dimensões tão midiáticas quanto o material compartilhado, acrescido por uma camada de leitura, subjetividade, interpretação que cada usuário agrega para difundir. E isso pode alterar o conteúdo inicial, ao menos a leitura dele pelos amigos do usuário que o compartilhou.

Nessa torrente de vieses, já me parece impossível entender que são as notícias – tais como vêm dos sites mainstream – que formam o grande caudal das informações que circula pelas redes sociais. Que elas sejam um disparador, tal como analisa a matéria da Folha, é inegável. Mas o conteúdo das redes vai muito, pero muuuucho além do mero compartilhamento de notícias. E ainda que aí elas estejam em grande número, definitivamente, já não estamos falando do mesmo material.

Noutras palavras: conteúdo mainstream, quando cai na rede, é ressignificado, reformulado pelas gentes e se torna outra coisa que não mais conteúdo mainstream.

E argumentos do tipo “a mídia distorce a realidade; vamos controlar a mídia” já não são mais aceitáveis não pelo trabalho da própria mídia, mas porque a realidade é uma construção pessoal, coletiva e íntima simultaneamente. E mais: é múltipla! Por isso não tolera controle.

Se o controle pretendido é da ordem dos negócios, para evitar os monopólios e que interesses comerciais se sobreponham aos propósitos editoriais de um veículo, é o público quem desprezará práticas abusivas (já despreza!), afastando-se cada vez mais da mídia mainstream, seja por falta de identificação/representatividade, seja por intolerância à “comerciaficação” da mensagem. A evolução é natural. Não é um governo – seja do Pedro ou do Paulo – quem pode ter o poder soberano e único (olha o perigo!) de regular os meios.

Mas voltando às redes sociais, vale lembrar que as métricas desse território urgem ser outras, já que o DNA do ambiente, a tal “dinâmica das redes” é tão, mas TÃO diferente dos meios de “massa”. Num espaço originalmente de atenção e informação fragmentadas, onde o conteúdo é ultra de nicho e a palavra do meu amigo tem muito mais impacto e credibilidade do que 15 mil posts sobre o mesmo assunto, esquece o quantitativo, amiguinho. A moeda aqui é quali e ninguém tasca!

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metodologia_pesquisa_folhaUPDATED em 17/11/2014: Queridos, agora que voltei à descrição do método de como a Folha conduziu essa pesquisa, fiquei realmente preocupada. Vejam o que diz no destaque do recorte ao lado e, por favor, me ajudem a entender e me corrijam se eu estiver estatísticamente maluca.

O que foi considerado “jornalismo profissional” nessa pesquisa foram compartilhamentos de links de matérias de sites editoriais, certo? O jornal identificou que 4 a cada 10 posts continham link de conteúdo externo. Só aí já estamos falando de 40%, que obviamente já não é a maioria. Entre esses links externos, seguramente nem todos são de sites de “jornalismo profissional”, concordam? Ou seja, estamos falando que menos de 40% dos posts selecionados (e não auditáveis, vale lembrar) traziam referência a veículos de imprensa.

Então, pelamordedeus, COMO podem dizer que o “jornalismo profissional domina as redes sociais” se menos de 40% contém referências a sites jornalísticos?

Ou a Folha não sabe fazer conta ou não entende o significado do verbo “dominar”. Um dicionário pros colegas, por favor…

Sério, gente, posso estar enganada. Me ocorreu agora isso. Me corrijam se eu estiver dizendo besteira sobre o método dessa pesquisa.

 

 

 

 


Referência:
Pedemonte, D.F. “La guerra por las representaciones. Mediatización y disenso en el gobierno de Cristina Fernández de Kirchner. In Elizalde, L.; Pedemonte, D. F.; Riorda, M. (eds.). “La gestión del disenso. La comunicación gubernamental en problemas.” La Crujía Ediciones: Buenos Aires, 2011

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