E se o jornalismo acabasse?

Sabe aquele texto que tu querias ter lido mas não teve tempo durante o dia? Assim foi com esse artigo do sempre brilhante Ramón Salaverría. Mandei por e-mail pra mim com o título TEM QUE LER. Ele apareceu no mesmo dia em que saiu uma entrevista com o Jeff Jervis, no El País. Coisa pra enlouquecer qualquer pesquisador de comunicação.

Com o Salaverría é sempre assim… A cada linha que leio, aumenta a vontade de estar sentada num café, batendo papo com ele sobre o futuro-presente do jornalismo. Ponto. Não apenas o digital, pois como ele bem lembra nesse texto, os suportes de agora irão se tornar obsoletos em seu momento, tal como se torna hoje o impresso.

Mas como um oceano me impede de chamar o gênio para um café-com-papo e medialunas, aqui deixo minha modesta parte do diálogo.

O Salaverría analisa a atualidade do jornalismo pelo mesmo ponto de partida que eu e muita gente justificamos a reflexão: pela crise. Mas ele fala de duas crises:

1) a depressão econômica e financeira mundial já do final de 2007
2) a transformação tecnológica a que foi submetida a indústria da comunicação

Aí eu acrescentaria uma terceira crise, Professor, a de credibilidade ou – talvez de modo mais premente – a crise de relevância.

O que vem matando o jornalismo ou as empresas de comunicação não é a tecnologia, como o senhor bem observa:

As tecnologias, enfim, não têm demonstrado ser um substituto para os jornalistas, mas um formidável complemento. Nunca o jornalismo contou com semelhantes possibilidades para cumprir melhor a função social que lhe corresponde. Resta, claro, renovar os conteúdos e as linguagens para aproveitar a fundo todo esse potencial tecnológico.

Lógico, entendo que a desestabilidade provocada pelo giro tecnológico na indústria da comunicação vem obrigando uma transformação incômoda para muitos de se renovar, rever processos, olhar para o próprio umbigo com as de questionamento, não de admiração, como é tão habitual no nosso meio. Entendo que essa crise é real e impacta tanto quanto a deterioração financeira de vários setores, inclusive que afetou anunciantes e, com isso, abalou nossa maior fonte de receita.

É importante lembrar, também, que esse giro tecnológico e seus reflexos econômicos não apenas dizem respeito a formatos publicitários, a empresas que faturam menos, a métricas ineficazes, a audiências menos atentas. Essa dobradinha “tecnologia + economia” pariu monstros que, na forma de algoritmos, engole as boias salva-vidas do jornalismo como curadoria. Ainda assim, não creio que Facebook e Google sejam os principais vilões do jornalismo. Eles apenas inventaram uma outra indústria – que, cá entre nós, era para nós termos criado antes! – e fazer frente a ela me faz lembrar de Dom Quixote lutando contra o moinho.

Sabemos que está assim de veículo jornalístico querendo pegar carona no êxito das redes sociais para crescer em audiência. Eu mesma trabalhei nisso durante anos!! Quebrei a cabeça sobre como tirar o melhor proveito das redes sociais em prol de marcas editoriais online. Mas reduzir a rede social aplicada ao jornalismo como fonte de audiência é muita ignorância! E a razão é simples.

Jeff Jervis sintetiza assim: “Estamos en un negocio basado en el volumen. Vendemos usuarios al peso, y no individuos. ¿Y qué ocurre? Que lo que conseguimos es corrompernos. Conseguimos gatos. Porque si lo que buscamos es “volumen, volumen, volumen”, “páginas vistas, páginas vistas, páginas vistas”, lo que conseguimos es fotos de gatos y titulares estúpidos. Hemos corrompido el sistema.

Ou seja, tentamos sugar quanti de uma teta que só produz quali. Porque o DNA do social é quali. Até mesmo o seu modelo de negócio é essencialmente quali. Só funciona porque a segmentação é precisa e quanto menos pessoas o anúncio alcança, mais caro ele é. Ora, o sujeito alcançado é o alvo perfeito! Exclusivamente quali. É a natureza do social. Enquanto continuarmos mamando nessa teta, seguiremos morrendo de fome.

É tudo uma questão de métricas?

Então temos que vender quali? Mudamos as métricas e batemos todas as metas? Coincidimos quando o senhor diz:

“À semelhança daquelas indústrias ineficientes, as empresas jornalísticas estão sendo obrigadas a evoluir a partir de um modelo analógico, fortemente condicionado pelo suporte de distribuição, para o digital, onde as regras do jogo e a escala de valores mudaram por completo.”

Não acredito que vender tempo de atenção ao invés de impressões – como estão fazendo The Economist, Financial Times e Medium – salve a nossa lavoura. Tempo é mais uma dessas burláveis métricas quanti e ainda assim não teríamos chegado ao quali.

Então será que nosso desafio é DESCOBRIR UMA NOVA MÉTRICA quali e projetar um modelo jornalístico em cima dela? Novamente estaríamos batendo de frente com uma indústria jovem, viçosa e cheia de energia. Quem quer concorrer com Google e Facebook? Sim, eu vi a Abril recriar o Blogger, o Digg e o Flickr, mas com a arvorezinha no alto que, na cabeça do narciso, vale mais do que qualquer hábito mundialmente consolidado. Não deu. Fecharam essas e uma porção de outras iniciativas, inclusive veículos, inclusive referentes em seus segmentos.

Eles tentaram se reinventar. E não deu certo. Por isso é preciso questionar o caminho que escolheram para se reinventar. Daí o senhor elenca as rupturas que nos empurram à renovação:

* Já não há mais territorialidade para a notícia
* Ruptura de barreiras, todos são mídia: A multiplicação dos meios, que trouxe consigo este novo contexto, não foi acompanhada, entretanto, por um aumento paralelo da demanda – foi o que fechou o OhmyNews International em 2010
* Ruptura de ciclo editorial:
já não há mais deadline nem formato específicos
* Ruptura no monopólio da palavra
* Ruptura do modelo de negócio

Pergunto, Professor, se realmente é o caso de ainda nos preocuparmos com a renovação do jornalismo para sobrevivência. Não valeria mais a pena deixar toda essa resistência morrer à míngua e partir logo para um novo modelo? Ok, é meio radical de minha parte, confesso. Mas me parece mais indolor e eficiente. Quem não quer se renovar está no seu direito, segue assim e, aos poucos, o cenário vai eliminando essas peças do tabuleiro. Algo natural, aliás, como já vem acontecendo. Em paralelo, um novo modelo de jornalismo ou atividade-X é gestado levando em conta não apenas as novas tecnologias, o novo cenário econômico, a nova indústria das redes sociais como, principalmente, os novos hábitos sociais.

E se o jornalismo acabasse?

“Não se trata de uma simples necessidade de renovar os modelos de negócio, e nem é suficiente, claro, adotar simples mudanças detecnologia ou de design. Tudo isso é pura perfumaria. Trata-se de redefinir os modos de informar paraseguir cumprindo uma função que a sociedade precisa.”

Resetemos o jornalismo. Partamos do zero. Enfrentemos o pior dos monstros que nos aterrorizam: e se o jornalismo deixasse de existir? Quem sofreria o quê? Como era o mundo antes da imprensa e o que colhemos como saldo definitivo desde então? Talvez possamos elencar uma série de conquistas positivas, como uma fiscalização do poder público, a disseminação de valores democráticos, a ampliação de nossos olhares ao termos contato com a notícia de longe. Tudo isso para nos tornarmos mais críticos, melhores conhecedores da realidade que nos cerca e melhorar nosso estar-no-mundo. Agora me diga que não se pode fazer isso tudo e muito mais sem a figura de um veículo. Ou melhor: que já não se faz toda essa alquimia informacional by ourselves, entre nossos pares, com mais ou menos confiança, com mais ou menos didatismo.

Ora, mas os meios investigam de maneira profissional. Isso é algo que toma tempo, tem seus custos e nos apresenta de modo palatável. Até mesmo o “jornalismo de entretenimento” tem o seu porquê de existir.

O que me intriga é que, cada vez mais, o público espera essas informações ou as busca não importa onde. A aura da marca editorial já era! Seja através do relato de uma celebridade ou de um político nas redes sociais, seja por meio de um aplicativo de previsão do tempo e cotação da bolsa, seja pelo relato em primeira pessoa de seus círculos de amigos. Porque a informação que antes era exclusividade dos meios agora está em qualquer lado. A fonte está a um clique. Para que tantos intermediários? Nem sequer para empacotadores de dados me parece que somos insubstituíveis. Os algoritmos ajudam, mas a população é crítica o suficiente para ler a informação organizada – ou até mesmo para organizá-la, como mostram as iniciativas de crowdsourcing.

Entendo quando o senhor ressalta nosso papel de garimpeiros, de editores muito mais que repórteres: “Se a rede coloca qualquer conteúdo num clic, necessitamos de profissionais que nos indiquem onde está a informação valiosa. Mais ainda: necessitamos que a tornem relevante, inteligível e amena. Só desta forma a informação irá adquirir significado e poderá ser interpretada pelo público.” 

Talvez estejamos ainda nessa fase. Mas as mãos espertas de um bebê que tenta “navegar por uma revista” achando que o papel é touch mostram que, muito proximamente, o público não vai mais precisar de alguém que torne a informação relevante. Ele mesmo saberá os caminhos para chegar até ela.

Onde eu penso que realmente possa estar a chave que definirá o futuro do jornalismo é numa análise profunda sobre a necessidade de se informar. Em geral. Digo… No seu dia, da hora em que acorda ao momento de dormir, que informação você necessita?

– como está sua família?
– previsão do tempo?
– tem mail novo do chefe?
– em quanto está meu saldo da conta hoje?
– a que horas passa meu ônibus?
– tem corte de trânsito no meu caminho?
– o elevador que pego está seguro?
– precisa levar pão pra casa?
– qual o menu no bandejão da empresa?
– o que meus amigos estão contando de suas vidas?
– o que eu posso contar sobre a minha?
– tem alguma conta que vence hoje?
– saiu algum livro que eu preciso ler?
– meu time ganhou ontem?
– a presidente baixou algum decreto que muda meu ir-e-vir?
– vai ter corte de água ou luz no meu bairro?
– se eu fizer esse curso posso ter um salário melhor?
– há coisa melhor para me vestir ou comida a experimentar?
– alguém que depende de mim precisa de algo?
– as redondezas da minha casa registraram algum episódio de insegurança?
– mudaram as regras dos planos de saúde, telefonia, cartão de crédito?
– aquele projeto pessoal segue de pé? O que preciso fazer por ele?
– …

Essas são apenas algumas das grandes “categorias” de informação que costuram nossas rotinas, altamente permeáveis e substituíveis, mas com graus semelhantes de origem. Se fizermos um exercício de responder a origem de cada resposta às perguntas acima, quantas delas viriam única e exclusivamente de veículos jornalísticos?

A mudança mais radical não está no jornalismo, Profe, mas no que move a vida das pessoas. É isso que as movia em direção ao jornalismo e agora as conduz aos sites insitucionais, aos perfis oficiais em redes sociais, aos seus círculos de contato direto.

É a coletividade a serviço do indivíduo. E nós estamos nesses dois lados: ora somos coletividade, ora somos indivíduos. Um jogo social que se auto-organiza sem a necessidade de um juiz, como ainda se pretendem muitos veículos de imprensa. Quem sabe o que é bom para mim sou eu e aqueles que estão à minha volta. Analisamos isso em parceria, a todo instante, para nosso próprio bem-estar-no-mundo. O jornalismo como conhecemos fica tão periférico nesse jogo… aí surge a crise de relevância. E essa não se resolve com tecnologia.

Jornalismo é outra coisa!

Se o jornalismo nunca teve a ambição de suprir nossa necessidade de informações pessoais – o que discordo, pois o estar-no-mundo é ultra pessoal, desde a previsão do tempo que se consegue por meio de aplicativo até a manifestação que corta o trânsito e é assunto no Twitter – ele deve assumir que ocupará, cada vez mais, um papel periférico a ponto de beirar o dispensável na vida das próximas gerações.

A sobrecarga crescente de informações nos obriga a fazer escolhas. Geralmente, escolhemos aquilo que nos é mais próximo ou nos interessa mais. É o indivíduo outra vez se sobrepondo à coletividade sem a qual não vive.

Conseguiremos dar nome e conotação de jornalismo a essa coletividade? Ou será que jornalismo passará a ser uma prática individual, assim como a higiene ou a alimentação? Talvez o jornalismo seja o elo de sustentação de um indivíduo-coletivo, um hábito cotidiano de dar e receber notícias, alheio a veículos massivos e auto-equilibrado. Caberá institucionalizar esse jornalismo? Talvez. Mas ele será antes uma propriedade muito mais coletiva do que individual. E as redes sociais mostram elementos de sobra para uma mudança jornalística comportamental.

Bom, antes disso vou colocar os pés no chão, estudar microjornalismo e o que os meios podem fazer com ele, conosco, nesses tempos atuais. 🙂 É o que há para agora, mas pode ser o começo de uma transformação muito mais profunda…

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